O Gralha
Não deu a eles o prazer de ouvir seu grito. Aguentou cada
chibatada sem emitir um único som. Nas primeiras pancadas todo o seu corpo se contraía,
mas após algum tempo a dor era tanta que não aguentava ficar em pé. Perdeu as
forças e ficou pendurado pela corda amarrada ao pelourinho tomado por um ódio
que só não era maior que o desejo de morte. O negrinho estava com a calça
arriada, coberta por sangue e barro logo abaixo dos joelhos. Seus irmãos o
olhavam com pena, medo e ira.
E
Maria não gritava mais.
Antes de desmaiar tinha de vê-la novamente. Uma última
olhadela para a mulher que amava. As poucas lágrimas que possuía escorreram
frias como o corpo da escrava. Pediu aos orixás para que a mulher fizesse uma
passagem tranquila e então se estatelou no chão quando o feitor desamarrou seus
pulsos.
- Deixa disso, homem! – havia dito Maria quando ele lhe
dissera que fugiriam. – O S’nhorzim
nos mataria se descobrisse que anda tendo essas ideias.
- Não mataria não, tenho certeza – respondeu o Gralha –
Porque ele nunca vai descobrir.
E não tardou muito para o negrinho descobrir que estava
errado. Quando o Coronel ficou sabendo mal tinham saído da fazenda. Maria fora
estuprada na frente dele, logo depois morta e o Gralha apenas assistiu enquanto
apanhava.
- Gralha, chupe. – alguém lhe ofereceu um pedaço de cana
depois que se recolheram para dormir – roubei do engenho hoje. Vai te dar um
pouco de energia. – O escravo ficou realmente grato, mas não conseguiu
identificar aquela alma solidária. Estava bastante escuro.
Naquela noite, não sonhou com absolutamente nada. Fora
uma noite escura e cruelmente dolorosa dentro da senzala. O enorme galpão de
madeira não tinha nenhum tipo de divisão além das quatro pilastras que a
sustentavam. A palha do colchão pinicava os ferimentos das costas do negrinho e
as correntes que lhe prendiam os pés o impedia de vira-se para deitar de
barriga para baixo. Resolveu então não se mexer, quiçá não doesse tanto. Entretanto,
o miserável não pôde lutar contra a febre e os tremores que a peste lhe
causava. No fim das contas, foi realmente uma péssima noite.
Quando o galo cantou, a porteira da senzala se abriu. O
fedor vindo das latrinas se espalhou com a corrente de ar. O feitor - um mulato
entroncado de barba grossa - e o coronel Patrício adentram no alojamento. O
coronel mandou todos os negros para o engenho e o Gralha foi levado para
tratarem de suas feridas. Enquanto era
tratado viu de relance a mãe, mas não estava autorizado a falar com ela.
Em menos um quarto de mês o negrinho já estava no
engenho. As feridas demoraram um pouco a cicatrizar, mas a motivação havia lhe
abandonado.
Durante uma tarde de sábado foi pego de surpresa com uma
visitante a muito sumida. Sua mãe era uma escrava como ele, mas trabalhava na
cozinha e raramente podia visitar o filho. Embora fosse sempre bom vê-la,
naquela tarde o ódio que o Gralha sentira no dia da morte de Maria retornou com
tamanha força que se tornou impossível para o homem conter seus atos.
Francisca fora uma negra bela quando jovem, sempre
possuiu ancas largas e cabelos longos. Tinha olhos negros brilhantes que mesmo
depois da velhice ainda mantinham o encanto, mas naquela tarde quando visitou o
filho, os tais olhos estavam inchados, acima da sobrancelha havia um enorme
corte, e os grossos lábios escuros estavam encobertos por uma crosta de lama e
sangue seco.
A mulher chorava e seus soluços a impediam de falar. O
coronel vinha bêbado logo atrás com uma chibata na mão e um longo sorriso no
rosto.
- Um pouco de pinga, negrinho? – ofereceu com sarcasmo o
velho Patrício.
Sem uma palavra o Gralha pulou sobre o coronel e os dois
começaram a rolar no chão. O capitão do mato deu um tiro para o alto e a
confusão atraiu todo o engenho. O coronel desembainhou a arma da cintura e
empurrou o escravo para longe.
- Chegue mais perto e estouro seus miolos, mulato
infeliz! – seu sorriso havia desaparecido. Olhou para o capitão – O que estava
esperando para matar este imbecil?
- Mato agora se quiser coronel! – respondeu apontando o
fuzil para o Gralha.
A garrafa de pinga que o velho Patrício segurava antes de
toda a bagaceira estava caída no chão. Com um rápido giro da mais bela
representação de capoeira o escravo chutou para longe a arma da mão do coronel
e quebrou a garrafa de pinga numa pedra. Cravou o vidro na barriga do velho.
O coronel desatou a rir descontroladamente enquanto
cuspia sangue no rosto do negrinho.
- Diga a ele, Francisca – murmurou – Vamos! Diga quem é o
pai deste infeliz.
Francisca ajoelhou-se aos prantos e começou a rezar o pai
nosso. Gralha já sabia. Nada precisava ser dito. Era sua sina matar o pai. Era
o que desejava desde criança.
- Arda no inferno. – sussurrou no ouvido no coronel.
- O mesmo para você.
O velho olhou para capitão e silenciosamente e deu a
ordem para atirar. Enquanto sua mãe gritava, o negrinho fechou os olhos e
partiu ao encontro de Maria.
Lá no céu, um bando de urubus voava em círculos. E há
quem diga que uma bela gralha pousou no topo do tronco e gritou seu nome.
Nenhum comentário:
Postar um comentário