"QUEM FALA UMA LÍNGUA SABE MUITO MAIS DO QUE APRENDEU" (CHOMSKY)


segunda-feira, 7 de abril de 2014

MALDITA PROFESSORA

                                                             Maldita Professora!
Pedro Bandeira
- Doutora Janaína, chamando na UTI ... Chamada para a doutora Janaína no pronto-socorro ... Doutora Janaína, favor comparecer ao centro cirúrgico ... Doutora Janaína ... Doutora Janaína ...
Janaína acordou sobressaltada. Olhou o relógio de pulso. Dormira apenas uma hora das duas a que se dera direito naquela noite de plantão. Mas, desperta, verificou que ninguém invadira a sala de repouso dos médicos a sua procura e ninguém a estava chamando pelo alto-falante. Ela havia mais uma vez sonhado com o estresse de verdade que era a rotina de quem ocupa cargos de chefia em um hospital. Apesar de ser diretora clínica, Janaína não aceitava as mordomias do cargo e fazia questão de partilhar dos plantões com seu pessoal. Era o seu modo de pôr-se a par de tudo o que se passava no hospital. E aquele seu modo de ser, de agir, de dirigir pessoas, de apoiá-las, de estar sempre presente tomara-se vitorioso. Aquela era a única clínica da cidade que conseguira diminuir pela metade os casos de infecção hospitalar, além de ter-se tomado um dos melhores centros de pesquisas científicas do país.
Com menos de trinta anos, Janaína conquistara muito. Sua tese de doutorado já estava traduzida em três línguas, e seus artigos já tinham sido publicados pelas mais importantes revistas médicas do mundo. Mas a jovem médica nunca parecia satisfeita. Cansaço era uma palavra que ela desconhecia e "furacão" era o modo como os funcionários do hospital se referiam à doutora Janaína quando ela não estava por perto. "Bom, ainda tenho uma hora. Quinze minutos para um banho e ainda vai dar tempo para dar uma olhada no pronto-socorro ... " O terninho branco estava amassado. Abriu o armário onde estava escrito seu nome. Tirou outro uniforme impecavelmente envolto em plástico. Sempre trazia três jogos completos, inclusive roupa de baixo. O dia-a-dia e o noite-a-noite de um hospital trazem sempre muitas surpresas, especialmente aquelas que mancham os uniformes dos médicos de sangue, pus, vômito e excrementos. Era sempre bom estar preparada. Despiu-se, jogando toda a roupa na cesta de desinfecção. Abriu o chuveiro ao máximo e entrou sob o jato revigorante. Aos poucos, todo o banheiro estava invisível com o vapor quente. Ensaboou-se vigorosamente, usando o sabonete desinfetante dos cirurgiões. Sob o vapor, dentro das paredes brancas do banheiro, o único ponto negro era o seu lindo corpo nu.
- Como é, menina negra? Optou pela vagabundagem?
- Mas, dona Vera, eu estudei ... Varei a noite ... Tanto que a senhora me deu nota oito ...
- Oito! Grande coisa! Vai se contentar com nota oito, é? E se o mais importante da matéria estiver justo nos vinte por cento que você desconhece? O que é que você vai ser na vida?
- Eu ... quero ser médica ...
- Médica?! Não me faça rir! Com a sua vagabundagem, você só vai entrar num hospital como faxineira. Ou como paciente, em um hospital para indigentes!
- Mas oito foi a maior nota da classe, dona Vera ...
- Não quero saber. Você vai fazer todos os exercícios complementares deste livro que eu trouxe de casa. E é para amanhã!
- Mas, dona Vera ...
Janaína já passara por quatro anos de psicanálise, mas jamais conseguira se livrar daquelas lembranças amargas do colegial e daquela megera que tinha atormentado sua vida durante três anos. Professora de Química! Maldita professora! Tinha sido duro ... Colegial à noite, trabalho num laboratório de dia, estudos pela madrugada, sem dinheiro para cursinho e, no fim, o primeiro lugar no vestibular para a melhor faculdade de Medicina do país. Por sorte a faculdade era pública, como tinham sido seus cursos anteriores. Mesmo assim, se não tivesse vencido o concurso para a bolsa especial, como poderia ter comprado todos aqueles livros caríssimos que a bolsa lhe forneceu de graça? Nos dois primeiros anos, a bolsa só se renovaria se ela conseguisse manter suas médias em oitenta por cento.
"Oitenta por cento! O eterno 'oito' da dona Vera ... Bruxa!" A partir do terceiro ano, a bolsa exigia noventa por cento de aproveitamento, e Janaína lutou como uma leoa. Começou a fazer estágios em hospitais e, por uma dessas sortes que o destino raramente reserva aos despossuídos, a sociedade mantenedora daquela clínica resolveu pagar-lhe um bom salário durante todo o resto do estágio que, para todos os outros estudantes, era não-remunerado. Algum dinheiro começou a entrar, e Janaína destacou-se. Ao formar-se em primeiro lugar, já era uma médica requisitada e de prestígio. Sua tese de mestrado foi defendida em dois anos e a de doutorado tornou-a nacionalmente conhecida pela originalidade e pelo rigor científico com que tratara o tema. Devido ao sucesso que, quase imediatamente, suas pesquisas conseguiram no país e no exterior, Janaína foi convidada para assumir aquele cargo de chefia, tomando-se responsável por equipes compostas de médicos que, em sua maioria, tinham quase o dobro de sua idade.
Enxugou-se friccionando o corpo com força como o noivo gostava de fazer nos poucos momentos em que ela arranjava para estar com ele. Arrepiou-se ao lembrar-se de Carlos Alberto. Com ele, virava menina, ficava frágil e gostava de ser mimada. O doutor Carlos Alberto era um conhecido cirurgião, oito anos mais velho que ela. E como era difícil encontrar períodos em que ele não estivesse numa sala de cirurgia e, ao mesmo tempo, ela não estivesse mergulhada em sua clínica!
- Doze, até catorze horas de trabalho por dia! Como é que você agüenta, minha filha? - perguntava-lhe volta e meia o velho pai, sempre inchado de orgulho. Quem, um simples pedreiro como ele; quem, um negro pobre como ele, poderia sequer sonhar ter uma filha médica? E ainda por cima uma cientista respeitada como Janaína?
"Quando é que eu vou arranjar tempo para casar?", pensava ela acabando de vestir-se. "O Carlos Alberto não pára de perguntar ... Ai, eu queria casar logo com ele, queria ter filhos ... Mas como eu posso tirar férias justo agora que ... "
Para Janaína sempre havia um "justo agora que ... " para adiar planos pessoais. Ela pertencia quase exclusivamente aos seus pacientes, principalmente aos mais pobres, e aos jovens médicos que se sentiam esmagados pela roda-viva enlouquecedora do hospital e contavam com ela em todos os momentos. Quando abriu a porta da sala de repouso dos médicos, Janaína estava pronta, como se tivesse dormido oito horas seguidas. E lá estava o eterno alto-falante a chamar por ela:
- Doutora Janaína, por favor, compareça à urgência ... Doutora Janaína, chamada urgente na ...
Entrou no elevador junto com a maca empurrada por uma enfermeira.
- Bom dia, Clotilde! - cumprimentou ela, que conhecia todos os funcionários pelo nome.
- Bom dia? - sorriu a moça. - Ainda são três horas da madrugada, doutora Janaína!
- Então, boa madrugada! - brincou ela. - Seu marido já conseguiu o novo emprego?
- Já, doutora. Começou na segunda-feira.
- Parabéns, querida.
Automaticamente, Janaína pegou a ficha do paciente da maca, ao mesmo tempo que agarrava seu pulso.
- Oi, querido, o senhor parece ótimo! Paciente do doutor Macedo? - perguntou ela, lendo o prontuário.
- É, sim, doutora - respondeu a enfermeira. - Preparação para cirurgia.
O homem na maca sorria para ela. Para todos os pacientes, a fisionomia sempre alegre e segura de Janaína funcionava como uma terapia. A qualquer hora do dia ou da noite, Janaína sempre parecia um anjo salvador, lindo e perfumado, e sua simples presença já proporcionava ânimo ao doente, aumentando suas chances de recuperação. Mas o caso ali presente era difícil. Janaína folheou os exames rapidamente. Um câncer de próstata com metástases. Sobreviera um bloqueio e a cirurgia se fazia urgente. Macedo era um grande urologista, mas aquele pobre homem tinha poucas chances.
- Boa sorte, querido - disse ela no mais lindo dos sorrisos. - O senhor está nas melhores mãos.
- Obrigado, doutora ...
A porta do elevador abriu-se e a maca saiu para o corredor.
Sobre ela, o homem seguia para os preparativos cirúrgicos pensando que os anjos de verdade são negros ...
Por mais dois andares, Janaína continuou sozinha dentro do elevador. A fazer-lhe companhia, novamente a lembrança aterrorizante da distante professora:
- Como é, ]anaína? Vai abandonar os estudos, é? Pelo jeito vai mesmo ... O que vai ser? Passista de escola de samba?
"Maldita! Maldita!", pensava a pobre menina na ocasião. "Vou mostrar para ela, ah, se vou! Quem vai dançar é ela! Eu vou ser médica! Vou ser médica! Ela vai ver!"
Logo na saída do elevador, uma enfermeira a esperava:
- Doutora, por favor, o doutor Gelson está esperando pela senhora.
Entrou na ante-sala da UTI e o chefe do setor correu para ela.
- Doutora, por favor, venha ver este caso. Já consegui controlar a arritmia, mas ... Bom, acho que é sua especialidade e ...
- Deixe ver o prontuário, Gelson.
O médico estendeu-lhe uma pequena pilha com papéis e radiografias. Era um tumor grande, e os exames mostravam que o paciente estava longe das condições necessárias para ser levado à mesa de cirurgia.
- Hum ... Qual é a idade dele?
- Dela, doutora Janaína. É uma senhora ...
Janaína leu o nome da paciente no alto do prontuário e sentiu-se desfalecer. "Como?!"
Seus lábios tremiam, como se estivesse com febre, quando perguntou:
- Dona Vera?! É a dona Vera Moreira?
- Sim, o nome dela é Vera Moreira. Não sabia que a senhora a conhecia, senão ...
- Em que leito ela está?
-No onze ...
Forçando-se para não cambalear e não esbarrar nos outros leitos da UTI, Janaína percorreu a fila. Número oito, nove, dez ... onze! Afastou a cortina de plástico que ocultava o leito e encarou o rosto emoldurado pelo branco do travesseiro. Era um rosto velho, enrugado demais pelo sofrimento, e tinha um olhar baço que se fixou nela:
- Janaína ...
"Dona Vera? É dona Vera mesmo?"
A voz lhe fugia da garganta, o ar parecia faltar-lhe nos pulmões e era como se o sangue tivesse se congelado em suas veias.
- Eu ... É dona Vera mesmo?
A mulher esquelética sorria agora docemente. Seu olhar tinha o brilho do triunfo:
- Janaína ... minha querida ... eu sabia que você conseguiria ... Venha cá, venha mais perto, menina ...
Janaína nunca poderia imaginar que acabaria por encontrar aquela professora num momento como aquele, um momento de despedida. Mas a expressão da velha professora traduzia um orgulho tal que a morte hesitaria em cumprir sua tarefa se chegasse naquele momento.
- Você nunca entendeu, não é, Janaína? Você sempre me odiou, não é?
- Eu ...
A médica tremia ao aproximar-se. Estendeu a mão e a paciente tomou-a, apertando.
- Estou indo embora, Janaína. Por favor, não minta para os moribundos. O que você pensava de mim naquela época?
- Dona Vera ... Eu não sei. .. Por que só comigo, dona Vera?
Por que a senhora me perseguia tanto? Por que comigo?
- Você mesma tem essas respostas, minha filha - balbuciou. - Você chegou lá. Chegou aonde eu sabia que poderia chegar. Você era a melhor, Janaína, a melhor. Mas isso não bastava, porque você é negra, seus pais eram pobres, não tinham poder. Você teria de conseguir ser melhor do que os melhores, para cumprir seu destino. Eu não podia tratá-la igual aos outros, aos outros que eram brancos, que não sofreriam preconceitos no futuro ... Eu tinha de exigir, de forçar, de ser dura ... E eu sabia! Eu sabia! Eu sabia que você conquistaria tudo o que desejasse na vida, se aprendesse a lutar. A lutar contra todos, inclusive contra mim ... Ah, eu estava certa! Agora, posso ir em paz ...
- Dona Vera! Dona Vera! - gritava Janaína, descontrolada, esquecendo-se do silêncio necessário à UTI, ao sentir sob os dedos o desaparecimento da pulsação da velha professora. - Rápido! Ressuscitação! Gelson, Neide! Tragam o desfibrilador! Já! Salvem essa mulher, pelo amor de Deus!
O doutor Carlos Alberto saía de uma cirurgia complicada. Acabava de lavar-se quando o chamaram ao telefone. Quem falava era um residente da UTI, muito nervoso:
- Doutor Carlos Alberto, por favor, venha cá. É a doutora Janaína. Acho que é o cansaço. Ela sempre diz que a gente tem de lutar para não sofrer quando perde um pacinte, mas ...
- O que houve?
- Uma paciente acabou de falecer, e ela está chorando demais, doutor, ela ...
Quando o belo médico chegou à UTI, Janaína estava sentada numa cadeira do corredor, com um copo de café nas mãos. - Janaína, querida, o que houve?
A diretora clínica do hospital levantou seus lindos olhos para o noivo. "Como é bonito esse médico! E ele é meu!", dizia seu olhar, já calmo, acompanhado por um sorriso sereno:
- Estou bem, querido. Mas sabe aquela sua proposta?
- Proposta? Que proposta?
- Aquela do casamento ...
- O quê?!
- Sabe? Essa é a melhor hora para dizer sim. Estamos mesmo precisando de umas férias, não é?
- Meu amor! Que maravilha! Mas você dizia que ... Janaína tocou-lhe levemente os lábios, fazendo-o calar-se. Tudo mudou, querido. Este é o melhor momento, sabia? Eu não tenho mais nenhum ódio dentro de mim, nenhum rancor, nenhum ressentimento. Agora eu só tenho amor. Você quer esse amor, assim, sem nem um tracinho de ódio? De ódio por ninguém? Só de gratidão, só de carinho, só de eterna ternura por toda a humanidade?
- Querida, o que está havendo com você?
- Está havendo tudo. Me beije, por favor. .. Acho que os colegas não vão se importar ...

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