Maldita Professora!
Pedro Bandeira
-
Doutora Janaína, chamando na UTI ... Chamada para a doutora Janaína no
pronto-socorro ... Doutora Janaína, favor comparecer ao centro cirúrgico
... Doutora Janaína ... Doutora Janaína ...
Janaína
acordou sobressaltada. Olhou o relógio de pulso. Dormira apenas uma
hora das duas a que se dera direito naquela noite de plantão. Mas,
desperta, verificou que ninguém invadira a sala de repouso dos médicos a
sua procura e ninguém a estava chamando pelo alto-falante. Ela havia
mais uma vez sonhado com o estresse de verdade que era a rotina de quem
ocupa cargos de chefia em um hospital. Apesar de ser diretora clínica,
Janaína não aceitava as mordomias do cargo e fazia questão de partilhar
dos plantões com seu pessoal. Era o seu modo de pôr-se a par de tudo o
que se passava no hospital. E aquele seu modo de ser, de agir, de
dirigir pessoas, de apoiá-las, de estar sempre presente tomara-se
vitorioso. Aquela era a única clínica da cidade que conseguira diminuir
pela metade os casos de infecção hospitalar, além de ter-se tomado um
dos melhores centros de pesquisas científicas do país.
Com
menos de trinta anos, Janaína conquistara muito. Sua tese de doutorado
já estava traduzida em três línguas, e seus artigos já tinham sido
publicados pelas mais importantes revistas médicas do mundo. Mas a jovem
médica nunca parecia satisfeita. Cansaço era uma palavra que ela
desconhecia e "furacão" era o modo como os funcionários do hospital se
referiam à doutora Janaína quando ela não estava por perto. "Bom, ainda tenho uma hora. Quinze minutos para um banho e ainda vai dar tempo para dar uma olhada no pronto-socorro ... " O
terninho branco estava amassado. Abriu o armário onde estava escrito
seu nome. Tirou outro uniforme impecavelmente envolto em plástico.
Sempre trazia três jogos completos, inclusive roupa de baixo. O
dia-a-dia e o noite-a-noite de um hospital trazem sempre muitas
surpresas, especialmente aquelas que mancham os uniformes dos médicos de
sangue, pus, vômito e excrementos. Era sempre bom estar preparada. Despiu-se, jogando toda a roupa na cesta de desinfecção. Abriu
o chuveiro ao máximo e entrou sob o jato revigorante. Aos poucos, todo o
banheiro estava invisível com o vapor quente. Ensaboou-se
vigorosamente, usando o sabonete desinfetante dos cirurgiões. Sob o
vapor, dentro das paredes brancas do banheiro, o único ponto negro era o
seu lindo corpo nu.
- Como é, menina negra? Optou pela vagabundagem?
- Mas, dona Vera, eu estudei ... Varei a noite ... Tanto que a senhora me deu nota oito ...
-
Oito! Grande coisa! Vai se contentar com nota oito, é? E se o mais
importante da matéria estiver justo nos vinte por cento que você
desconhece? O que é que você vai ser na vida?
- Eu ... quero ser médica ...
- Médica?! Não me faça rir! Com a sua vagabundagem, você só vai entrar num hospital como faxineira. Ou como paciente, em um hospital para indigentes!
- Mas oito foi a maior nota da classe, dona Vera ...
- Não quero saber. Você vai fazer todos os exercícios complementares deste livro que eu trouxe de casa. E é para amanhã!
- Mas, dona Vera ...
Janaína
já passara por quatro anos de psicanálise, mas jamais conseguira se
livrar daquelas lembranças amargas do colegial e daquela megera que
tinha atormentado sua vida durante três anos. Professora de Química!
Maldita professora! Tinha sido duro ...
Colegial à noite, trabalho num laboratório de dia, estudos pela
madrugada, sem dinheiro para cursinho e, no fim, o primeiro lugar no
vestibular para a melhor faculdade de Medicina do país. Por sorte a
faculdade era pública, como tinham sido seus cursos anteriores. Mesmo
assim, se não tivesse vencido o concurso para a bolsa especial, como
poderia ter comprado todos aqueles livros caríssimos que a bolsa lhe
forneceu de graça? Nos dois primeiros anos, a bolsa só se renovaria se
ela conseguisse manter suas médias em oitenta por cento.
"Oitenta
por cento! O eterno 'oito' da dona Vera ... Bruxa!" A partir do
terceiro ano, a bolsa exigia noventa por cento de aproveitamento, e
Janaína lutou como uma leoa. Começou a fazer estágios em hospitais e,
por uma dessas sortes que o destino raramente reserva aos despossuídos, a
sociedade mantenedora daquela clínica resolveu pagar-lhe um bom salário
durante todo o resto do estágio que, para todos os outros estudantes,
era não-remunerado. Algum dinheiro começou a entrar, e Janaína destacou-se. Ao
formar-se em primeiro lugar, já era uma médica requisitada e de
prestígio. Sua tese de mestrado foi defendida em dois anos e a de
doutorado tornou-a nacionalmente conhecida pela originalidade e pelo
rigor científico com que tratara o tema. Devido ao sucesso que, quase
imediatamente, suas pesquisas conseguiram no país e no exterior, Janaína
foi convidada para assumir aquele cargo de chefia, tomando-se
responsável por equipes compostas de médicos que, em sua maioria, tinham
quase o dobro de sua idade.
Enxugou-se
friccionando o corpo com força como o noivo gostava de fazer nos poucos
momentos em que ela arranjava para estar com ele. Arrepiou-se ao
lembrar-se de Carlos Alberto. Com ele, virava menina, ficava frágil e
gostava de ser mimada. O doutor
Carlos Alberto era um conhecido cirurgião, oito anos mais velho que ela.
E como era difícil encontrar períodos em que ele não estivesse numa
sala de cirurgia e, ao mesmo tempo, ela não estivesse mergulhada em sua
clínica!
-
Doze, até catorze horas de trabalho por dia! Como é que você agüenta,
minha filha? - perguntava-lhe volta e meia o velho pai, sempre inchado
de orgulho. Quem, um simples pedreiro como ele; quem, um negro pobre
como ele, poderia sequer sonhar ter uma filha médica? E ainda por cima
uma cientista respeitada como Janaína?
"Quando
é que eu vou arranjar tempo para casar?", pensava ela acabando de
vestir-se. "O Carlos Alberto não pára de perguntar ... Ai, eu queria
casar logo com ele, queria ter filhos ... Mas como eu posso tirar férias
justo agora que ... "
Para
Janaína sempre havia um "justo agora que ... " para adiar planos
pessoais. Ela pertencia quase exclusivamente aos seus pacientes,
principalmente aos mais pobres, e aos jovens médicos que se sentiam
esmagados pela roda-viva enlouquecedora do hospital e contavam com ela
em todos os momentos. Quando abriu a
porta da sala de repouso dos médicos, Janaína estava pronta, como se
tivesse dormido oito horas seguidas. E lá estava o eterno alto-falante a
chamar por ela:
- Doutora Janaína, por favor, compareça à urgência ... Doutora Janaína, chamada urgente na ...
Entrou no elevador junto com a maca empurrada por uma enfermeira.
- Bom dia, Clotilde! - cumprimentou ela, que conhecia todos os funcionários pelo nome.
- Bom dia? - sorriu a moça. - Ainda são três horas da madrugada, doutora Janaína!
- Então, boa madrugada! - brincou ela. - Seu marido já conseguiu o novo emprego?
- Já, doutora. Começou na segunda-feira.
- Parabéns, querida.
Automaticamente, Janaína pegou a ficha do paciente da maca, ao mesmo tempo que agarrava seu pulso.
- Oi, querido, o senhor parece ótimo! Paciente do doutor Macedo? - perguntou ela, lendo o prontuário.
- É, sim, doutora - respondeu a enfermeira. - Preparação para cirurgia.
O
homem na maca sorria para ela. Para todos os pacientes, a fisionomia
sempre alegre e segura de Janaína funcionava como uma terapia. A
qualquer hora do dia ou da noite, Janaína sempre parecia um anjo
salvador, lindo e perfumado, e sua simples presença já proporcionava
ânimo ao doente, aumentando suas chances de recuperação. Mas
o caso ali presente era difícil. Janaína folheou os exames rapidamente.
Um câncer de próstata com metástases. Sobreviera um bloqueio e a
cirurgia se fazia urgente. Macedo era um grande urologista, mas aquele
pobre homem tinha poucas chances.
- Boa sorte, querido - disse ela no mais lindo dos sorrisos. - O senhor está nas melhores mãos.
- Obrigado, doutora ...
A porta do elevador abriu-se e a maca saiu para o corredor.
Sobre ela, o homem seguia para os preparativos cirúrgicos pensando que os anjos de verdade são negros ...
Por
mais dois andares, Janaína continuou sozinha dentro do elevador. A
fazer-lhe companhia, novamente a lembrança aterrorizante da distante
professora:
- Como é, ]anaína? Vai abandonar os estudos, é? Pelo jeito vai mesmo ... O que vai ser? Passista de escola de samba?
"Maldita!
Maldita!", pensava a pobre menina na ocasião. "Vou mostrar para ela,
ah, se vou! Quem vai dançar é ela! Eu vou ser médica! Vou ser médica!
Ela vai ver!"
Logo na saída do elevador, uma enfermeira a esperava:
- Doutora, por favor, o doutor Gelson está esperando pela senhora.
Entrou na ante-sala da UTI e o chefe do setor correu para ela.
- Doutora, por favor, venha ver este caso. Já consegui controlar a arritmia, mas ... Bom, acho que é sua especialidade e ...
- Deixe ver o prontuário, Gelson.
O
médico estendeu-lhe uma pequena pilha com papéis e radiografias. Era um
tumor grande, e os exames mostravam que o paciente estava longe das
condições necessárias para ser levado à mesa de cirurgia.
- Hum ... Qual é a idade dele?
- Dela, doutora Janaína. É uma senhora ...
Janaína leu o nome da paciente no alto do prontuário e sentiu-se desfalecer. "Como?!"
Seus lábios tremiam, como se estivesse com febre, quando perguntou:
- Dona Vera?! É a dona Vera Moreira?
- Sim, o nome dela é Vera Moreira. Não sabia que a senhora a conhecia, senão ...
- Em que leito ela está?
-No onze ...
Forçando-se
para não cambalear e não esbarrar nos outros leitos da UTI, Janaína
percorreu a fila. Número oito, nove, dez ... onze! Afastou a cortina de
plástico que ocultava o leito e encarou o rosto emoldurado pelo branco
do travesseiro. Era um rosto velho, enrugado demais pelo sofrimento, e
tinha um olhar baço que se fixou nela:
- Janaína ...
"Dona Vera? É dona Vera mesmo?"
A voz lhe fugia da garganta, o ar parecia faltar-lhe nos pulmões e era como se o sangue tivesse se congelado em suas veias.
- Eu ... É dona Vera mesmo?
A mulher esquelética sorria agora docemente. Seu olhar tinha o brilho do triunfo:
- Janaína ... minha querida ... eu sabia que você conseguiria ... Venha cá, venha mais perto, menina ...
Janaína
nunca poderia imaginar que acabaria por encontrar aquela professora num
momento como aquele, um momento de despedida. Mas a expressão da velha
professora traduzia um orgulho tal que a morte hesitaria em cumprir sua
tarefa se chegasse naquele momento.
- Você nunca entendeu, não é, Janaína? Você sempre me odiou, não é?
- Eu ...
A médica tremia ao aproximar-se. Estendeu a mão e a paciente tomou-a, apertando.
- Estou indo embora, Janaína. Por favor, não minta para os moribundos. O que você pensava de mim naquela época?
- Dona Vera ... Eu não sei. .. Por que só comigo, dona Vera?
Por que a senhora me perseguia tanto? Por que comigo?
-
Você mesma tem essas respostas, minha filha - balbuciou. - Você chegou
lá. Chegou aonde eu sabia que poderia chegar. Você era a melhor,
Janaína, a melhor. Mas isso não bastava, porque você é negra, seus pais
eram pobres, não tinham poder. Você
teria de conseguir ser melhor do que os melhores, para cumprir seu
destino. Eu não podia tratá-la igual aos outros, aos outros que eram
brancos, que não sofreriam preconceitos no futuro ... Eu tinha de
exigir, de forçar, de ser dura ... E eu sabia! Eu sabia! Eu sabia que
você conquistaria tudo o que desejasse na vida, se aprendesse a lutar. A
lutar contra todos, inclusive contra mim ... Ah, eu estava certa!
Agora, posso ir em paz ...
-
Dona Vera! Dona Vera! - gritava Janaína, descontrolada, esquecendo-se
do silêncio necessário à UTI, ao sentir sob os dedos o desaparecimento
da pulsação da velha professora. - Rápido! Ressuscitação! Gelson, Neide!
Tragam o desfibrilador! Já! Salvem essa mulher, pelo amor de Deus!
O
doutor Carlos Alberto saía de uma cirurgia complicada. Acabava de
lavar-se quando o chamaram ao telefone. Quem falava era um residente da
UTI, muito nervoso:
-
Doutor Carlos Alberto, por favor, venha cá. É a doutora Janaína. Acho
que é o cansaço. Ela sempre diz que a gente tem de lutar para não sofrer
quando perde um pacinte, mas ...
- O que houve?
- Uma paciente acabou de falecer, e ela está chorando demais, doutor, ela ...
Quando
o belo médico chegou à UTI, Janaína estava sentada numa cadeira do
corredor, com um copo de café nas mãos. - Janaína, querida, o que houve?
A
diretora clínica do hospital levantou seus lindos olhos para o noivo.
"Como é bonito esse médico! E ele é meu!", dizia seu olhar, já calmo,
acompanhado por um sorriso sereno:
- Estou bem, querido. Mas sabe aquela sua proposta?
- Proposta? Que proposta?
- Aquela do casamento ...
- O quê?!
- Sabe? Essa é a melhor hora para dizer sim. Estamos mesmo precisando de umas férias, não é?
-
Meu amor! Que maravilha! Mas você dizia que ... Janaína tocou-lhe
levemente os lábios, fazendo-o calar-se. Tudo mudou, querido. Este é o
melhor momento, sabia? Eu não tenho mais nenhum ódio dentro de mim,
nenhum rancor, nenhum ressentimento. Agora eu só tenho amor. Você quer
esse amor, assim, sem nem um tracinho de ódio? De ódio por ninguém? Só
de gratidão, só de carinho, só de eterna ternura por toda a humanidade?
- Querida, o que está havendo com você?
- Está havendo tudo. Me beije, por favor. .. Acho que os colegas não vão se importar ...